quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Agostinho da Silva sobre o Bendito Desemprego

Muito oportuno texto tirado das Conversas Vadias entre Maria Elisa e Agostinho da Silva.
M.E. - …E às vezes com médias muito boas, muito altas até, ficam a décimos de não conseguirem entrar…
A.S. - (…) A única vantagem deles é darem depois emprego aos psicólogos… que têm que os curar das doenças psicológicas…
M.E. - …Aos psicólogos, aos psiquiatras (…). Cria-se muito emprego, afinal de contas…
A.S. - Cria-se muito emprego,não é? – com o desemprego de muita gente…
(…)
M.E. - Se o senhor Professor cá mandasse na cultura o que é que fazia? (…)
A.S. - Bom, eu começava por dar tudo aquilo que é um alicerce e um degrau para a cultura. A cultura começa por todas as pessoas poderem comer o que devem comer, e começa por terem uma casa como devem ter uma casa, e por ter o vestuário que
querem; e depois é que começam a ter interesses culturais. Ponho aqui agora cultura como o Saber. Primeiro, eu acho que, para toda a gente, o que é
necessário num país é haver os três S: S número um: Sustento; S número dois: Saber; S número três: Saúde. Então vamos começar pelo Sustento.Primeiro degrau das coisas. E em seguida as pessoas dizem qual é o seu interesse em saber, o que é que
querem aprender (…). E eu digo isto para grandes e para pequenos! – notando-se que, como nós estamos ainda na tal guerra, e precisamos de ter soldados produtores (cada um de nós é apenas um soldado produtor disto ou daquilo); em lugar de escolhermos Artilharia ou Cavalaria, escreve-se Filosofia ou Matemática, por exemplo. Então, como é isso, é preciso que a escola, por enquanto, seja uma escola mista, uma escola que seja uma Academia Militar – digamos assim – para que cada pessoa aprenda uma profissão, aprenda a sua arma; e por outro lado, um ensino que faça o possível por já contemplar aqueles que serão reformados,aqueles que vão ser os poetas à solta, dar-lhes meios de expressão – e olhe que as escolas portuguesas estão fazendo
isso (…)
M.E. - Quais escolas?
A.S. - (…) As escolas em que há uma parte curricular, que toda a gente tem que
frequentar com maior ou menor aproveitamento; e depois há os clubes, livres, há os grupos, que se formam, para que a pessoa aprenda aquilo que realmente quer aprender. Um homem pode aprender ortografia, ou aritmética, ou lá o que seja, e, ao mesmo tempo, já
prevenindo-se para o caso de nunca mais ter emprego,saber pintar, saber fotografar, saber dançar; saber, se for preciso, ser vadio, porque só vale a pena ser vadio quando se contempla o mundo, e se percebe o mundo.
M.E. - Acha que essas profissões – fotografar, pintar, dançar – , vão ter futuro?
A.S. - Não se trata de profissão: trata-se de arte, trata-se de criação. O homem não nasce para trabalhar, o homem nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.

2 comentários:

Maria Afonso Sancho disse...

M.E. - Mas, senhor Professor, o primeiro S, o Sustento,
como é que as pessoas vão viver, como é que comem, como é que sobrevivem?...
A.S. - Há gente que gosta disso. Eu conheço muita gente que o que gosta é de cultivar a terra (…), para eles é a obra de criação deles. Eu conheci um homem que tinha sido Governador de Macau, já estava aposentado de não sei de quê, da outra posição que ele tinha, e que passava o dia inteiro montando e desmontando motores na quinta onde morava… andava sempre muito sujo de óleo (…), a mulher lamentava-
se que ele só tomava banho à hora do jantar, ou qualquer coisa assim; mas, de facto, esse homem se cumpria, montando e desmontando motores, não é? Para ele não era impressão nenhuma…
M.E. - Mas lá está, montar e desmontar motores, depois de uma vida de trabalho, em que provavelmente ficou com a sua reforma, que lhe possibilitava o tal sustento, não é?…
A.S. - Claro!, (…) e por isso o objectivo de nossa vida no mundo é haver essa reforma para toda a gente, mas evitando o que acontece a grande parte dos reformados, que, porque só aprenderam a trabalhar enquanto os tentaram educá-los (…), depois ficam muito tristes porque não têm trabalho e morrem rapidamente…
M.E. - Não sabem fazer mais nada, pois é…
A.S. - Não sabem fazer mais nada senão trabalhar…

Maria Afonso Sancho disse...

1 Discotecas
2 Terra do Norte de Portugal onde Agostinho da Silva
passou a sua infância antes de ir estudar para o Porto
3 Traduzido do latim significa “números fechados”.
Actualmente, nem toda a gente que queira e tenha
concluído o 12º ano pode entrar numa universidade.
Os numerus clausus são o número limitado de vagas
que a universidade disponibiliza para um dado curso
e que é determinado consoante a capacidade dessa
universidade em receber alunos.
4 Em Economia, a lei da oferta e da procura determina
em muito o que as pessoas compram com o dinheiro
que têm. Da mesma maneira, a quantidade de pessoas
que frequenta o Ensino Superior português depende
da capacidade da universidade para ter alunos, isto é,
dos numerus clausus que a universidade estabelece
(oferta), e da quantidade de pessoas que se candidata
a um curso (procura). Nos casos em que a procura é
maior que a oferta, o critério para seleccionar os alunos
que entram na universidade é a média de classificações
às disciplinas que eles fizeram – e portanto só os alunos
com as médias mais altas é que entram. Noutra das suas
conversas, Agostinho da Silva diz, e bem, que essas
leis de mercado são, na verdade, leis de mercadores,
já que o que efectivamente determina quem entra na
universidade e quem fica de fora são os numerus
clausus que são estabelecidos pelos mercadores das
universidades…